29 de dezembro de 2009

Como beber vinho

São Bento é o padroeiro da Europa. De toda a Europa.

Viveu no século V, e pregava uma vida de moderação, recato e trabalho. Como deve ser.

Escreveu um livro de regras. Os santos tinham mania de impor regras para as pessoas, já desde aquela época (risos). Quase todas as regras de São Bento eram contra a preguiça, os excessos, as tentações e muitas outras coisas boas de se fazer. Mas em meio à tanta regulação há um interessante capítulo intitulado “Como beber”. É onde o santo traça normas para a ingestão de vinho pelos monges, porque monge adora um vinho.

“Um quarto de litro de vinho por dia é suficiente”, recomenda o sóbrio São Bento. “Mas, se uma maior quantidade se revela necessária, cabe ao abade decidir, tomando cuidado para que não haja excesso nem embriaguez, pois o vinho faz até mesmo o sábio cambalear”.

Gostei muito desta parte: “Se uma maior quantidade se revela necessária”.

Li essa história num livrinho de bolso, há uns anos atrás. Era um livrinho que contava a história do vinho através dos séculos. Foi escrito por Jean-François Gautier, que, você deve ter percebido, é um francês. Entre as dezenas de histórias relatadas por Gautier está, naturalmente, a da transubstanciação, que não é o nome de nenhuma via férrea europeia, mas do famoso milagre protagonizado por Jesus nas Bodas de Caná, em que Ele transformou água em vinho.

O caso é narrado pelo apóstolo João: Jesus acompanhou a mãe a um casamento e levou junto os 12 discípulos. Isso sempre me intrigou: os 12 discípulos também teriam sido convidados? Ou foram de furões? Sou levado a crer na segunda hipótese. Nunca vi convite de casamento no qual estivesse escrito: “Carlos Eugênio Lisboa e senhora, mais 12 acompanhantes”. Além disso, há outra prova de que todos aqueles apóstolos não eram esperados: o vinho do casamento terminou antes que terminasse a festa. Evidentemente, os discípulos beberam à grande. Aí a mãe de Jesus pediu que ele resolvesse o problema.

– Eles não têm mais vinho – informou-Lhe Nossa Senhora.

Jesus se irritou um pouco:

– Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou.

Mas Santa Maria nem se deu ao trabalho de responder-Lhe. Virou-se para os serventes e ordenou:

– Fazei tudo o que ele vos disser.

Considero essa outra prova de que os discípulos não tinham sido convidados. Jesus deve ter pensado: já que fui eu quem trouxe a turma, tenho que dar um jeito de arranjar mais vinho.

Foi o que Ele fez. Mandou que os serventes pegassem seis talhas de pedra, as completassem com água e as levassem para o mestre-sala. Eles obedeceram e, quando as talhas foram abertas, estavam cheias de um tinto oloroso e de delicada qualidade. João encerra a história assim:

“Esse princípio dos sinais Jesus o fez em Caná da Galileia e manifestou sua glória, e os discípulos creram nele”.

É óbvio que o gosto de Jesus pelo vinho é algo aprazível de se ler, sobretudo num fim de semana, mas há outra informação interessante nesta passagem bíblica: exatamente a parte em que o evangelista observa: “E os discípulos creram nele”.

É preciso crer nas pessoas, mesmo que o momento não seja oportuno. Crer, crer, crer.

27 de dezembro de 2009

Eles não têm amor

Às vezes os pais não não bons pais.

Eu acho que serei um bom pai. Ou pelo menos vou me empenhar para ser.

Dia desses eu estava pensando em contar uma história dessas para minha namorada e para alguns amigos. Eu era bem pequeno, uns cinco ou seis anos de idade, e brincava com meu amigo Daniel. Nós dois armados de bisnaguinhas cheias de água! Lembro que caminhamos rindo até a calçada da frente, dobrando a esquina, e vimos que o vizinho adubava as plantas do jardim de frente dele. Olhamos para aquele monte de esterco, apertamos as bisnaguinhas e lançamos ali uns três ou quatro jatos de água, tudo muito inocente. Mas o vizinho não gostou. Virou-se e ralhou:

- Se atirarem água denovo, vou jogar esterco em vocês!

Corremos para o pátio, assustados. Meu pai percebeu que havia algo errado e me segurou pelos ombros.

- O que foi, Vitor?

Contei.

Ele se enfureceu. Tomou-me pela mão e me levou até a frente da casa, até o jardim do vizinho. Estacou sobre a grama.

- Tu disse que ia jogar esterco no meu filho? - gritou para o homem, que apoiou no chão a pá com que trabalhava e ficou olhando para ele, mudo.

- Tu disse que ia jogar esterco no meu filho? - repetiu meu pai, desafiador.

O homem não respondeu.

- Pois quero que tu jogue agora! - falou meu pai entre dentes, apontando para mim. - Joga! Joga que eu quero ver se tu é homem prá jogar esterco no meu filho!

O vizinho largou a pá no chão. Deu-nos as costas e deslizou para dentro de casa, acuado.

Foi uma atitude de valentia física do meu pai, obviamente, mas não posso dizer que tenha sido algo que me agradou, nem me deixou orgulhoso à época. Criança não aprecia violência.

Terminei de lembrar dessa história, e lembrei de um fala de um dos meus amigos na infância: "pelo menos o teu pai se importava contigo. O meu nem isso".

Foi então que me dei conta de que muitos dos meus amigos não tiveram bons pais, mas que eles, agora, são bons pais. Como eu tenho a pretensão de ser. O quê mudou entre uma geração e outra?

Eu sei o quê foi. E para falar a respeito, me valho de outra lembrança, da qual o protagonista é o homem que, de certa forma, sempre ocupou o lugar de um dos meus pais na minha criação: o meu avô. Quando se referia a pessoas que considerava de má índole, meu avô sempre usava a mesma frase para definí-las:

- Elas não têm amor.

Sempre dizia isso. Um dia perguntei a ele se não queria dizer que aquelas pessoas não "sentiam" amor. E ele balançou a cabeça, em uma negativa:

- Não, Vitor. Elas não têm amor porque nunca receberam amor.

Então compreendi. Elas até poderiam sentir amor, mas não tinham para dar. Como vão dar uma coisa um um sentimento que nunca receberam? Os bons pais de hoje, que não tiveram pais tão bons assim, eles certamente receberam amor de outras pessoas. Já os pais que cometem selvagerias com as crianças, essas coisas grotescas que temos lido nos últimos dias, gente que suplicia crianças com agulhas ou joga-os de janelas, esses sei bem o que há com eles.

Eles não têm amor.

15 de dezembro de 2009

Convívio em longo curso

Esta fala é uma dedicatória aos casais que permaneceram juntos desde sempre, aqui presentes ou não; ao mesmo tempo em que traz uma visão de compreensão aos casais que se dissolveram.

As relações interpessoais começam bem antes do convívio; começam com as relações de cada indivíduo consigo mesmo. E o sucesso ou não, lá adiante, vai depender em grande parte deste fator.

Os animais têm uma maneira peculiar de levar adiante suas relações, a qual já vem registrada em seu código genético. Assim, emitem mugidos, sibilos, múltiplos sons ou cânticos, mudam de cor, produzem ruídos ou cheiros, executam danças, e mantém comportamentos com inumeráveis maneiras de comunicarem que estão ávidas por uma relação ou outra finalidade instintiva relativa à espécie e a sua preservação. No entanto, cumprido o ato maior que se segue à fecundação, o mais das vezes, são encontros de forma transitiva e efêmera. E, logo a seguir, muitos desconhecem-se e esquecem de que modo estiveram juntos.

E como será na espécie humana e mais especificamente, como será na nossa conhecida civilização ocidental? Pois, na realidade, muitos exemplos nos dizem, embora nem todos nós percebamos (e ainda bem), que as nossas preferências pessoais para nos relacionarmos com outras pessoas, desde a simples simpatia até um envolvimento mais profundo e duradouro, depende das vivências prévias dos indivíduos envolvidos, vivências atávicas, muito antigas, reais ou até arquetípicas, com as quais, algumas delas, já nascemos. Dependendo, também, de fatores genéticos de temperamento, bem como da confluência de fatores adquiridos dos envolvidos (tendências de humor, interesses, afinidades, preferências laborais ou musicais, etc.). Além da singular e poderosa importância que exercem os fatores físicos externos, como a beleza física, a altura, a condição social, muitas vezes erroneamente magnificados, mas que na realidade não são desprezíveis, já que grande parte da comunicação inicial entra pelos olhos, antes mesmo de que nossa consciência perceba.

Uma relação amorosa comum entre dois desconhecidos começa, conscientemente e em primeiro lugar com a intenção de encontro com tal finalidade, uma excitação cerebral prévia. E para isso, a mulher em especial e os homens, que mais recentemente vão mais além da roupa, se preparam externamente garantindo a única e real performance que está mais ao seu alcance naquele momento, qual seja a beleza física do corpo ou da sua imagem. E para tanto malham, se maquiam, se penteiam e usam de outros artifícios comuns e adereços. Mas, na realidade, não é somente às suas expensas que ocorrem as relações duradouras ou até grandes amores, meta comum entre os comuns em geral. Sim, porque a meta mais almejada, normalmente, é viver um grande amor e este, surpreendentemente, começa o mais das vezes por um outro detalhe, quase sempre incontrolado ou inesperado.

No que diz respeito às feições dos envolvidos, não é incomum que, inconscientemente, alguém escolha outrem por ter semelhança visual com o rosto da mãe (dele) ou do pai (dela). E isto é muito comum que ocorra, para o quê, é consultado o arquivo da memória inconsciente (amígdala cerebral, hipocampo e as diversas prateleiras corticais), movidos que são pelos olhos do inconsciente e que só vêm à consciência anos depois, quando por acaso, folheiam um antigo álbum de família e deparam-se com determinadas semelhanças e surpreendem-se com “acasos”.

E nada, como hoje se sabe, é por acaso e sempre tem um ente responsável.

A partir daí, é comum também que reconheçam que seu relacionamento com o outro foi, até então, escorado em fortes nuances maternais ou paternais, conforme o caso.

Outros detalhes estão geralmente no fator surpresa do primeiro encontro, no gesto criativo e decisivo que a todos encanta. A gentileza é uma delas, o arrojo é outro; ou no fator invulgar, um gesto de mão que chame especial atenção e que tenha fugido do lugar comum, às vezes uma palavra bem colocada, uma transmissão telepática, uma peça que se encaixe; e até uma gafe que os una inicialmente, é bem possível. Nunca esquecendo do valor eloqüente da rosa certa, dada no momento certo ou no momento inesperado. E muitas outras formas de leitura corporal, como nos ensina a neurolinguística.

E, então, cai-se de amor de forma arrebatada. “E até hoje estamos casados e felizes", muitos dizem assim, não é mesmo?

O início, é um tempo que não ultrapassa os 2 ou 3 anos, em que, no cérebro, quem comanda essa sensação e sustenta essa inicial relação é um neurotransmissor chamado feniletilamida, responsável pela paixão, pelo grude, pelo tesão e pelo maravilhoso furor dos conhecidos “países baixos”.

Passado o início da fervilhante comunhão de vidas, período no qual se sobrevive durante um certo tempo das idealizações em comum e suas buscas, de devaneios e fantasias a respeito de um e de outro, do encanto dos ajustes e gostosos prazeres carnais permitidos, ao mesmo tempo o relacionamento passa a ser abastecido pelo projeto da casa própria para alguns, em relação à profissão para outros ou cai-se direto na constituição da família. E daí, para os filhos se transferem tais projetos depois de ampliados. Segue-se, então, a transferência de ideais para a criação destes, quando ainda são pequenos e sob a criação e a educação primária, a luta pela formação de uma personalidade que se assemelhe a dos pais em valores éticos e morais. Além das virtudes próprias e inerentes do casal, os filhos representam uma forte sustentação daqueles dois sobreviventes da paixão inicial, até que eles, filhos, crescem e migram para longe da tutela. Compreenda-se como um fato que ocorre depois de uma certa idade, em suas libertações. No entanto, na cabeça dos filhos, nessa nova e definitiva jornada de afastamento físico, deve ser imprimida a idéia de família, biológica, social e moralmente. Que o convívio no lar lhes deixe de herança, no mínimo, um superego saudável, onde a idéia de que o centro da gravidade, representado por Deus, pela autoridade paterna, pelo amor materno, bem como o valor do espírito de pátria, da família e do trabalho não se desfacele com o advento do inevitável novo modelo de família existente na base da sociedade moderna.

E o que se faz, então, com o relacionamento de quem fica, a sós e frente a frente, depois de uma certa idade, às vezes numa casa enorme e desabitada dos filhos que se foram a viver por si?

Pois, freqüentemente, além das pessoas se acasalarem pelas suas semelhanças físicas com familiares, pessoas se juntam muitas vezes pela necessidade de se completarem nos aspectos mais marcantes de suas personalidades e isso se chama "afinidades por caracteres invertidos". E surgem, então, pares compostos, por exemplo, de uma pessoa atabalhoada com um detalhista, de um irritado e explosivo com uma contemporizadora, de uma apressadinha e ansiosa com um descansado, de um angustiado com uma tranqüila, enfim, facetas individuais que se completam. E essa também é uma forma de se viver juntos, muitas vezes mais comum do que se possa imaginar e para tanto basta observá-las. Total, como diz sabiamente Caetano Veloso, “de perto, ninguém é normal”!

Mas, se à pessoa comum, analisada como um indivíduo com corpo e mente, nos é dado observar que seu psiquismo, fisiologicamente, não suporta a frustração, essa grande inimiga da alma, observa-se que através de sua providencia consciente, das soluções chamadas esperança e fantasia, ou mesmo às expensas do seu inconsciente, que usa, por exemplo, os sonhos como arma, esse indivíduo busque, não interessa quanto tempo leve e até por toda a vida, a solução destas frustrações, sob pena de se reconhecer um derrotado, coisa que o ego sadio o mais das vezes não admite.

Assim, baseado nisso, numa relação duradoura é necessário que nunca fiquem para trás situações mal resolvidas entre o casal, frustrações de qualquer parte ou porte que possam ser cobradas em momentos até de pequenos desencontros, tão comum, imputações freqüentes de culpa, que nem sempre está relacionada com o assunto daquele momento.

O perdão, solução freqüentemente pedida e concedida, somente será solução eficaz mediante uma fórmula de concessão que seja total e irrestrita, envolvendo inclusive o total esquecimento daquilo que se perdoa e que nunca mais deverá ser lembrado, nem de brincadeira. Mas que, cabe ao perdoado nunca confundir essa concessão com permissividade à reincidência. O contrário, é apenas transferir-se o fato desagradável ao subsolo de cada mente e que poderá ser reprisado com características cada vez menos confortáveis, uma vez que a sua causa principal permanece mal resolvida.

E este modelo é uma outra freqüente causa de discórdia entre casais.

Outro simples fato, é que, cada pessoa tem a sua individualidade, sendo esta condição uma só, única e com características próprias. Em outras palavras, um é um e o outro é o outro, o que torna a relação de paridade, díspar, apesar de parecer fácil. O reconhecimento maduro e respeitável das individualidades, passada a insana fase da paixão, é chegado o instante em que os envolvidos acordam-se pela manhã com a singular sensação de ter aterrissado na realidade.

E aí que começa a verdadeira vida a dois, que necessita ser levada adiante, sem retrocessos, sob pena de muito sofrimento e dilacerações nos rompimentos drásticos e totais, além da sensação de fracasso pessoal que uma separação acarreta. Finda a paixão aflita e quase irresponsável, aproximar as diferenças através da convergência é a grande missão daí para frente. Começa o amor sereno, sóbrio e interessado, o sentimento comum de doação mais que de pleitos, um sentimento sadio em egos sadios, sentimento construtor, antipolo da destruição e da morte.

Bastante distinto do que era considerado no passado, quando o sexo em casa era preferencialmente procriativo e o sexo por prazer era feito extra-muros, o ajuste sexual dos envolvidos é de extrema importância numa relação duradoura.

O bom relacionamento sexual dependerá sempre de uma atividade ajustada em sua freqüência, modalidade e derivações, que são peculiares a cada casal e que, quando atingido, se torna um dos esteios do convívio, modulando ou ajudando no seu grau de satisfação geral junto com os outros ingredientes da relação.

Excetuando-se o que se possa chamar de desvio de conduta, descontrole de impulsos ou permissividade cultural, um parceiro somente procura satisfação fora de casa, quando sente frustrados os seus impulsos e fantasias provenientes da libido no seio da sua relação preferencial e oficial; ou quando é vítima da pouco construtiva vaidade, tornando, assim, a relação menos estável e menos respeitável.

Voltando então à postulação anterior, quanto ao que fazer quando os filhos se vão e o casal se vê novamente frente à frente e a sós, vinte, trinta ou mais anos depois, talvez, mas sem o mesmo encanto ou os recursos facilitadores da paixão inicial... por certo terão que buscar dentro de si próprios os sentimentos amadurecidos e armazenados, as boas experiências vividas juntos e que adquirem grande valor se repartido a dois. Valerá, principalmente, a capacidade de amar na sua forma básica, mas também será importante a capacidade de inovar no amor, usando de um artificio poderoso que se chama criatividade que, quando bem usada, é capaz de dar ao habitual o sabor do novo, renovando as sensações e propiciando novas e grandes emoções. E nessa renovação, o sexo e suas variações serve também como grande auxiliar. E coisas como poder tomar banho juntos, por exemplo, ou fazer sexo no tapete da sala, todas são alternativas, iguais a muitas de que a fantasia é rica. E, de novo, a feniletilamida pode voltar a se secretada no cérebro, ainda que transitoriamente.

Ou, de outra forma, a canalização da criatividade, inerente à libido, a mesma que gerou os filhos, que pode ser transformada na criação em conjunto de algo que envolva o trabalho ou o prazer ou talvez os dois, onde as duas pessoas experimentem a sensação de estar indo pra frente, andando a vida de forma paralela e muitas vezes convergente, com objetivos comuns e sentindo-se úteis.

São os tão eficazes projetos em comum.

E assim passará o tempo de forma prazenteira e suportável, até que chegam os netos.

Esses sim!

Que definitivamente revivem nos mais velhos as sensações de paternidade e maternidade já arquivadas, condição agora mais facilmente executável por não envolver tanta responsabilidade. Mas que, na verdade, dão vida nova às emoções. Uma espécie de providencia da natureza que premia os avós pelo esforço de ter criado filhos com muito mais sacrifício, preocupação e zelo; e que, agora, nesta condição de avós, é como disse Oswaldo Aranha: "São os netos, como se fossem os filhos com açúcar"! E, também por isso, muitos casais permanecem juntos e revitalizam suas uniões ao se dedicarem às expectativas depositadas nesses novos filhos.

Nada desta receita de convívio longevo fugirá dos mesmos motivos que levaram as suas alianças a fazerem sulcos permanentes em seus dedos ou a seus rostos ficarem parecidos pela convivência, já que viveram as mesmas emoções e já que estas nos moldam as feições. Nada que fuja das alianças de suas almas cujos ectoplasmas se continuam; nada, nessa receita, fugirá dos motivos que os impedisse de viver algum dia separados e que os fazem freqüentemente morrer quase juntos. Ser, enfim, como diz o poeta Vinícius: “de preferência, um só defunto, para não morrer de dor”.

Recentemente, dois colegas, um nonagenário, por certo com seus 70 anos de vida conjugal e outro com pouco mais de 60 anos, 40 deles com uma vida em comum, emocionaram a platéia, em um encontro médico em Bagé, ao falarem das dores de enviuvar... e os pares idosos ficaram assim porque ganharam com o tempo virtudes que somente a eles é dado desenvolver, como a prudência, a bondade, a amizade, a generosidade, o desprendimento, a tolerância, o entendimento, o companheirismo e uma outra virtude importantíssima que certamente veio desde o início como seu corrimão moral: o respeito entre si, sem o qual relação humana nenhuma sobrevive. E são os mesmos velhos, que quando a saúde física os permite, fazem sexo com igual prazer e com mais freqüência do que nós imaginávamos em nossas mocidades. E que, além do mais, exercitam a condição de velhos com resignação e prazer, mas que usam o recurso de se comparar aos seus iguais com igualdade. E assim exercitam suas juventudes de antigamente.

Como nós, aqui, hoje!

Mas, então, vocês perguntarão ou exclamarão: com toda essa teoria, a prática para o “negro Brasil” não deu certo!? Ou a sua teoria na prática foi outra!? - já que me apresento hoje, aqui, e aproveito para lhes apresentar minha terceira esposa, que se chama Leslie. É verdade: no 1º, no 2º e no 5º ano, eu compareci com a Ruth. A partir do 10º ano até os 35 anos, lá em Jurerê, eu compareci com a Nia... pois, fui feliz com elas duas, cada uma a seu tempo.

Acontece que ainda não lhes falei sobre os motivos, a meu ver, que dão a solidez necessária à sustentação e a garantia da permanência na relação a dois. Motivos racionais – que resultam em produto sentimental - que dão durabilidade ao acasalamento no longo curso, sem que ele vire uma “aturação” ou uma acomodação feita de retalhos idealizados e não de um conjunto real de fatos positivos. E com cuja explicação deixarei de tomar-lhes a atenção logo, logo, pois já me alonguei demais.

Antes, um breve parêntese sobre minha relação pessoal atual: a Leslie é, finalmente, o amor da minha vida! Desde os meus 15 anos, quando passei a idealizar que eu teria que formar um lar que fosse melhor que o que me formou, em uma evolução natural, ela já era a minha companheira ideal. Pois vivi longos anos com as duas primeiras esposas - uma delas, Nia, a quem sou muito grato por ter contribuído para que eu chegasse a atingir, há vinte anos, a abstinência total do álcool – pois, procurava nelas, consciente e inconscientemente, a ela, Leslie. E, note-se que na minha relação com a primeira e até quase a metade da relação com a segunda, ela nem nascida era. Nesse meio tempo, Deus a fez nascer, crescer, ser feliz, sofrer, desiludir-se e amadurecer. E me entregou-a em uma idade para que eu possa ainda dar-lhe uma terminação na criação, guria que ainda é, apesar de já ser avó; é uma grande responsabilidade para mim.
Pois os pré-requistos de que lhes falei lá no início só foram encontrar ecos nela aos meus 60 anos, levados por forças convergentes, que pareceram casuais mas que certamente não foram, nem todas forças voluntárias e muitas, até, que funcionaram como uma predestinação, que aflorou, vinda quem sabe donde, de forma forte e cristalina. Fecha parêntese.

Assim, pois, atentem ao que segue! A condição mais necessária à duração em longo curso do amor romântico, entre casais, trata-se de uma virtude fundamental, qual seja: a admiração interpessoal. Certamente, mais forte que o amor!

A admiração nascerá do cultivo - em substituição aos valores iniciais menos perenes, desgastáveis pelo tempo, como a beleza física, por exemplo - por virtudes de maior valor frente a uma fase mais madura da relação. Em um casal, por mais venturosa que tenha sido a sua relação desde um início e por muito tempo, seus membros não conseguirão a infinitude amorosa se não crescerem de dentro para fora, como pessoas humanas, individualmente, e de forma livre e bela, de modo a alimentar a satisfação de novos critérios a que o amor será submetido ao longo de sua existência a dois.

Ao longo do tempo, é necessário, pois, que, passada a fase da avaliação inicial, biológica e ética, de cada par, mesmo na vigência de um bom e importante ajuste sexual, que novos valores sejam acrescentados a cada um, separadamente, para serem submetidos de tempos em tempos, a uma avaliação mais rigorosa da relação. Algo natural da ascendência de nossas mentes em busca do aperfeiçoamento. Invariavelmente, mais dia, menos dia, em não vendo atendido este imperioso pressuposto, o da necessidade de novos motivos de admiração interpessoal, grandes amores sofrerão desgaste, serão menos felizes ou serão infelizes e até sucumbirão. É mais ou menos como captava da vida e transformava em prosa cada vez mais atual Vinícius de Moraes: ”É preciso ter muito cuidado com o corpo, mas também com a mente, pois, qualquer baixo seu a amada sente... e esfria um pouco amor”.

Antes de finalizar, em homenagem a todos os nossos mestres do passado, gostaria de citar breves versos de um professor nosso; cardiologista, psiquiatra e sobretudo poeta; o irriquieto Luiz Guilherme do Prado Veppo:

“Quando te decidires, parte!
Não esperes que o tempo cubra de flores o caminho.
Nem sequer esperes o caminho.
Faze-o tu mesmo, e parte!
Parte sem lembrar que outros passos pararam,
Que outros olhos ficaram te olhando seguir!”

Foi o que fizemos, abraçando a medicina, até aqui!

E para concluir, aterrissando na congregação em si desta noite, quero dizer-lhes do meu convencimento que, em matéria de tempo, quarenta e seis anos é muito pouco para quem cultiva com esmero os sentimentos de coleguismo e amizade que aqui nos une, nessa festa. E vejam que muitos colegas já estão juntos e assim continuam desde as classes escolares, há mais de cinqüenta anos!

Celebremos, pois! Um VIVA! A todos nós!

Teoricamente, ainda temos o tempo de uma geração inteira a cumprir.

E a comemorar!

Recebam um amplexo apertado, um ósculo nas faces de cada um e uma aqui presentes e muito obrigado pela atenção de vocês

(do amigo e pai emprestado, José Brasil Teixeira)

Parte!

Quando te decidires, parte!
Não esperes que o tempo cubra de flores o caminho!
Nem sequer esperes o caminho,
faze-o tu mesmo e parte!
Parte sem pensar que outros passos pararam,
que outros olhos ficaram te olhando partir!

* Luis Guilherme do Prado Veppo
(retirado da página inicial do site de um grande amigo, José Brasil Teixeira - www.josebrasilteixeira.med.br)

14 de dezembro de 2009

Povo sofrido

Acho que não existe povo mais sofrido do que o povo etíope.

É o povo mais antigo do mundo. Fato, segundo me consta. Tão antigo quanto o xis-bacon com maionese do alemão, na esquina da Santa Casa de Misericórdia de Bagé. O chapista, popularmenre conhecido como "alemão", desfruta de uma insensibilidade para maionese que é de se assustar. Por isso que os amantes da maionese o idolatram: ele não mede a quantidade, somente vai colocando, espremendo o sachê, até cair maionese pelos lados. Alguns dizem que ele não passa maionese no pão, e sim passa pão na maionese.

Não posso afirmar muito mais do que isso, pois sempre que vou lá, grito: "- Sai um xis-bacon sem maionese?". Após alguns olhares de desconfiança, ali está o meu pedido, seco como uma batata-palha recém ensacada.

Bom, mas voltemos ao assunto dos etíopes.

Eles se vangloriam de muitas coisas, mesmo com o básico para a sustentação de um ser faltando. Se vangloriam, inclusive, de serem descendentes diretos da rainha de Sabá. Ah, a rainha de Sabá... essa mesmo, que com suas longas pernas de ébano torneadas, enfeitiçou o rei Salomão, o homem mais sábio que já pisou na face da Terra. Ana Hickman que se cuide.

Os gregos chamavam de "etiópia" todas as terras que tinham seus habitantes, em maioria, negros. Não distinguiam reinos ou países. Assim, o Sudão, o Egito, a Somália e até a Eritréia eram Etiópia.

Talvez por isso este naco de terra tenha entrado em decadência. Quando se tem tudo, nada se tem, não é verdade? Talvez faltasse humildade para este povo. Ou talvez eu esteja julgando errado, e ao invés de humildade, faltassem alimentos.

Mas não me cabe julgar. Não nos cabe julgar. A ninguém. Somente nos cabe agir com sapiência e consciência. A pensar, afinal, somos dotados deste dom e dele temos que fazer uso. Necessitamos de evolução. Não às guerras, não às armas, não à ignorância, e sim a tudo o que é bom e bonito. Porque sim, nós temos consciência do que é bonito e do que é justo.

Basta de injustiça.

6 de dezembro de 2009

Noite de chuva

Chovia muito no último dia que David viu seu pai. Ele estava com oito anos de idade e padecia na cama com 40ºC de febre. Amígdalas.

Os pais dele tinham se desquitado havia já alguns meses. David, seus irmãos e sua mãe moravam num apartamento de um quarto na Assis Brasil, em Porto Alegre. O pai dele tinha ido visitá-los, e se deparou com David tiritando sob a coberta.

Lembro com nitidez daquela noite, dele parado à soleira da porta do quarto, de pé, olhando para Davod, com a mãe ao lado, com o papel da receita do médico na mão. Ele tomou a receita e ofereceu-se para ir à farmácia. Deu as costas para o quarto, mergulhou na escuridão do corredor e foi embora. Nunca mais o vi, e nem David.

Logo depois ele se mudou para outro Estado, no Centro-Oeste, e lá construiu o resto da sua vida. Um dia de 2001, alguém disse a David:

— Teu pai morreu ontem.


Ele não sabia o que sentir. Não conto essa história com ressentimento. Porque acho que entendo o que aconteceu com o pai dele, naquela noite de chuva. Ao sair do apartamento, ele de fato tencionava comprar os remédios.

— Vou comprar dois de cada! — recordo que disse.

O pai de David era alcoolista.
Na rua, deve ter cruzado pela porta de um bar, ou com um amigo, e parou para beber. Quando deu por si, era tarde para ir à farmácia e tarde para desculpar-se. Continuou bebendo, gastou todo o dinheiro e, no dia seguinte, envergonhado, preferiu não dar notícias.

Assim passou-se um dia, e outro, e mais outro. De repente, havia transcorrido tempo demais para voltar atrás ou para dar explicação. O pai dele não enfrentou a própria vergonha, isso não é incomum. Acontece. É compreensível.

O que sempre me enfeitiçou nessa história, que, afinal, é parte da minha própria história, não foi o detalhe da desistência do pai dele. Não foi o abandono. Foi o momento em que o pai dele decidiu entrar no bar. Uma decisão tão aparentemente irrelevante, tão fácil de ser tomada, dar dois passos da calçada em direção a uma porta aberta, e, ao mesmo tempo, uma decisão tão crucial.

Fico pensando em como a vida é repleta dessas pequenas deliberações que podem alterar rumos e mover destinos. Fico pensando em todas as palavras espinhosas não ditas, nas vezes em que o sinal amarelo não foi cruzado, em que o gatilho não foi apertado, em que não liguei para ela, nas chances que deixei passar, e nas vezes em que fiz tudo isso, por bem ou por mal.

Um passo, uma palavra, um gole, um pedido de perdão que não foi feito, e tudo muda. Mudou para o pai de David. Mudou para mim. Neste fim de ano, o que desejo a todos é isso, que o passo seja certo, que a palavra seja macia, que o gole valha a pena, que o perdão seja pedido.

E concedido.