27 de fevereiro de 2009

Eu nunca trabalhei lá

Quando chegava o final do mês, eu e todos os outros funcionários da empresa reclamávamos do salário, prá variar. A diferença era que nunca tinha trabalhado por lá.

Há uns bons anos eu estava passando por aquele lugar, e bem na hora tinha sentido vontade de ir no banheiro. Pedi para usar o banheiro deles e acabei ficando!

Encontrei uma cadeira vazia, uma pilha enoooorme de papéis (que todo escritório tem) e uma velha máquina de escrever Olivetti. Era o que eu precisava para começar a digitar meus relatórios (que ninguém lia)! Vez ou outra eu alternava essa função com outra, mas essa era muito mais divertida e aguçava o meu inglês: interromper reuniões de negócio com frases de efeito.

- Me desculpem senhores, mas o job do Customer Relationship Management já está pronto?
- O quê?
- O job do CRM. Ele deve estar pronto on demand, ou isso influenciará o downsizing do nosso share of mind no data-warehouse.
- Nós não estamos sabendo de nada, senhor.
- Eu escrevi um relatório sobre isso ontem, depois do staff meeting! Corporate executives de merda! Todos vocês receberam, tenho plena certeza!
- A gente… hã... a gente não recebeu.
- Não receberam, né? Vocês que sabem! O presidente da empresa vem amanhã aí. Se esse job não estiver pronto, fuck off pra vocês todos!

Em questão de segundos todos eles começavam a revirar aquela papelada, procurando a porcaria do relatório. Esvaziavam latas de lixo, sacudiam as secretárias, ficavam nervosos, suavam frio... até que um deles teve um piripáque.

Mas logo depois desse incidente, eu resolvi encontrar uma nova tarefa: ficar parado no portão principal da empresa, e perfilado de jogador de futebol, espantar todos os nossos clientes. Admito que alguns deles eram mais corajosos que a grande maioria, e mesmo assim tentavam passar por mim. Mas nada que o spray de pimenta não resolvesse.

Quando nós fechamos o terceiro trimestre com severos prejuízos por causa dessa minha nova função, eu vi que deveria trocá-la. Já que a culpa era minha, eu poderia colocá-la em quem eu bem entendesse: sobrou pro João, do almoxarifado. Escrevi um relatório, notificando que tudo isso tinha acontecido simplesmente porque o João enchia a cara de café preto, todo santo dia. Pra isso, fiz as contas na ponta do lápis pra ver o quanto ele bebeu de café nos últimos três meses, transformei isso para reais, e finalizei o relatório sugerindo que ele fosse realocado para alguma outra função, abandonado à própria sorte em algum canto da empresa. Mas infelizmente, nada aconteceu.

Mas de uns meses para cá, desde que larguei a minha última função, tenho me sentido meio inútil. Então esses dias eu me dei uma nova função: cuidador de impressora. Mas eu fico ali sozinho o dia inteiro, sem ninguém pra conversar, e ela faz muito barulho. Eu fico ali, parado o dia inteiro do lado dela, e ela fazendo aquele barulho infernal que já estava me deixando zonzo e com dor-de-cabeça! Há, me irritei né... só podia me irritar desse jeito: Atraquei uma jarra inteira de café nela, e ela parou de fazer barulho!

Então, um daqueles nerds da divisão de manutenção da TI acabou aparecendo, e pra variar, me encheu de osso. Começou a gritar, dizendo que eu havia terminado de acabar com a única impressora daquele prédio. Mas claro, o culpado era o João! Garanto: se ele tivesse tomado todo o café como ele fazia antes, nada disso teria acontecido! Garanto que ele fez isso só pra me ferrar!

Bah... daí houve uma comoção geral em torno daquela impressora, parecia até velório de cachorro de família. Diziam que era uma HP Super Advanced Plus 3000+, que imprimia frente-e-verso, colorido, que nunca havia estragado e etc.

Então esses tempos uma mulher que eu nunca havia notado no escritório, atirou um pedaço de borracha em mim. Daí eu percebi que havia de fazer alguma coisa para acalmar os ânimos do pessoal! A minha idéia foi simplesmente brilhante: ficar circulando pelo escritório inteiro com um bloquinho. Isso, um bloquinho desses comuns de fazer anotações. De quando em vez, me chamavam:

- Ô, cara do bloquinho! Preciso imprimir um texto!

Daí lá ia eu... copiava tudo o que estava escrito no monitor do computador e deixava as folhas do bloquinho em cima da mesa, organizadinhas. Tudo certinho, tim-tim por tim-tim. O brabo era quando tinha alguma imagem na tela, e eu, como nunca fui muito bom de desenho, fazia o meu melhor, com lápis de cor, canetinha e tudo. Mas não estava rendendo o suficiente. Foda. Minha auto-estima estava quase à beira do precipício.

Mas toda essa minha nova função como impressora me absorveu muito, pode acreditar. Eu praticamente MORAVA no escritório, virava noites inteiras com o bloquinho e ia cada vez me distanciando mais da minha família. Tinha em casa uma esposa descontente, um cachorrinho pincher meio louco e hiperativo e um filho loiro de olhos bem puxados, que nem se parecia tanto comigo. Mas mesmo assim, eu gostava deles, e sentia falta da presença deles junto comigo.

Como eu andava meio dividido entre o trabalho e a família, achei melhor trazer eles para mais perto de mim, e assim ficarem comigo no escritório. Morar mesmo, sabe? E assim, nos mudamos de vez. O Joshua, meu filho loiro com cara de chinezinho, ganhou um quarto novo: uma das antigas salas de reunião. Pintamos uma parede e ele formatou o computador do Gerente de Projetos pra poder jogar o Winning Eleven dele. A minha esposa pôs um fogão na sala da Engenharia dos Processos e chamou todas as amigas pra conhecer a casa nova. E por incrível que pareça, o pessoal do escritório não tava dando a mínima pra esse alvoroço inteiro na minha vida!

Acho que estavam concentrados demais no trabalho deles... sei lá. O fato é que o pincher estava fazendo suas necessidades por todo o corredor, o Joshua passava os dias a roer a unha do pé no sofá da recepção, a minha esposa passando a feiticeira no carpete... e nada disso incomodava os funcionários!

Então, depois de uns poucos meses, o escritório fechou. Mas não foi a culpa de mais um trimestre de prejuízo, da crise econômica mundial ou do João, do almoxarifado. Ao voltar de um almoço de domingo, percebemos que a minha esposa esqueceu a chave no escritório, trancando a gente do lado de fora dele! Na segunda-feira, ninguém conseguiu entrar. E os dias foram se passando, os funcionários se amontoando na frente do escritório, depois da frente da Caixa Econômica Federal quando descobriram que a empresa havia pedido a tão famosa concordata.

Foi assim que decidimos ir no bar mais próximo e nos reunirmos pela última vez. Tomamos todas, literalmente enchemos a cara.

Lá pelas altas bandas, alguém sugeriu que fizéssemos uma roda de oração, para celebrarmos esse nosso último encontro. Demos as mãos e, como nenhum de nós sabia rezar e todos ali já estavam completamente bêbados, cantamos uma música triste do Caetano Velloso. Não me lembro o nome dela, mas me lembro do rosto daqueles colegas a quem aprendi a amar nestes últimos anos. Lembro de todos os momentos que compartilhamos juntos, das conquistas, das derrotas, do sentimento comum de fraternidade que nos unia em torno desta empresa... mas com esse pequeno detalhe: eu nunca efetivamente trabalhei lá.

2 comentários:

Janaina disse...

Esses loucos.. hehehe
Faz parte do teu livro de contos? ;*

Anônimo disse...

Oi Janaína!
Obrigado pelo comentário!
Ah, e faz sim... é o conto nº 18, a princípio.