Chovia muito no último dia que David viu seu pai. Ele estava com oito anos de idade e padecia na cama com 40ºC de febre. Amígdalas.
Os pais dele tinham se desquitado havia já alguns meses. David, seus irmãos e sua mãe moravam num apartamento de um quarto na Assis Brasil, em Porto Alegre. O pai dele tinha ido visitá-los, e se deparou com David tiritando sob a coberta.
Lembro com nitidez daquela noite, dele parado à soleira da porta do quarto, de pé, olhando para Davod, com a mãe ao lado, com o papel da receita do médico na mão. Ele tomou a receita e ofereceu-se para ir à farmácia. Deu as costas para o quarto, mergulhou na escuridão do corredor e foi embora. Nunca mais o vi, e nem David.
Logo depois ele se mudou para outro Estado, no Centro-Oeste, e lá construiu o resto da sua vida. Um dia de 2001, alguém disse a David:
— Teu pai morreu ontem.
Ele não sabia o que sentir. Não conto essa história com ressentimento. Porque acho que entendo o que aconteceu com o pai dele, naquela noite de chuva. Ao sair do apartamento, ele de fato tencionava comprar os remédios.
— Vou comprar dois de cada! — recordo que disse.
O pai de David era alcoolista. Na rua, deve ter cruzado pela porta de um bar, ou com um amigo, e parou para beber. Quando deu por si, era tarde para ir à farmácia e tarde para desculpar-se. Continuou bebendo, gastou todo o dinheiro e, no dia seguinte, envergonhado, preferiu não dar notícias.
Assim passou-se um dia, e outro, e mais outro. De repente, havia transcorrido tempo demais para voltar atrás ou para dar explicação. O pai dele não enfrentou a própria vergonha, isso não é incomum. Acontece. É compreensível.
O que sempre me enfeitiçou nessa história, que, afinal, é parte da minha própria história, não foi o detalhe da desistência do pai dele. Não foi o abandono. Foi o momento em que o pai dele decidiu entrar no bar. Uma decisão tão aparentemente irrelevante, tão fácil de ser tomada, dar dois passos da calçada em direção a uma porta aberta, e, ao mesmo tempo, uma decisão tão crucial.
Fico pensando em como a vida é repleta dessas pequenas deliberações que podem alterar rumos e mover destinos. Fico pensando em todas as palavras espinhosas não ditas, nas vezes em que o sinal amarelo não foi cruzado, em que o gatilho não foi apertado, em que não liguei para ela, nas chances que deixei passar, e nas vezes em que fiz tudo isso, por bem ou por mal.
Um passo, uma palavra, um gole, um pedido de perdão que não foi feito, e tudo muda. Mudou para o pai de David. Mudou para mim. Neste fim de ano, o que desejo a todos é isso, que o passo seja certo, que a palavra seja macia, que o gole valha a pena, que o perdão seja pedido.
E concedido.
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