8 de setembro de 2009

Luíza

Ano passado conheci uma menina. Vou chamá-la de Luíza.

Naquela época, Luíza andava dormindo mal. Tinha pesadelos, insônia, de noite queria ir para a cama dos pais, mesmo com os seus apenas 8 anos de vida. Após algum tempo, fui saber que o casal a quem ela chamava pai e de mãe não eram os seus pais verdadeiros. Mas eram os únicos que ela conhecia e de que se lembrava. Ela e um irmão, um ano mais novo, tinham sido abandonados há mais de 6 anos, tendo Luíza passado os seus primeiros 3 anos de vida num “lar” do qual não guardava nenhuma lembrança.

Quando tinha quase 3 anos, estes “pais” tinham ficado sensibilizados com o abandono da menina, e de acordo, trouxeram-na para casa, na qual deram todo o mimo e o carinho que uma filha menina precisa.

Tanto quanto a sua memória podia recuar, Luíza só se lembrava da mãe dando-lhe banho, de ir passear com os dois, do beijinho que eles davam nela todas as noites antes de dormir, das comidas de que mais gostava, de o pai ir levar e buscar na escola, etc. Manteve o contato com o irmão, porque ele tinha sido recebido como filho por outra família. Tentaram sempre ter o cuidado de se reunirem muitas vezes, faziam as festas em conjunto, davam passeios juntos e eles sabiam que eram irmãos apesar de terem "pais” diferentes.

Mas um dia a mãe apareceu.

Receberam uma comunicação da instituição de caridade para levarem a Luíza até lá. A nossa menina, para quem os pais eram os que sempre tinha conhecido é então confrontada com a presença de uma mulher, que ela sabia existir, mas que nunca tinha visto e por quem não sentiu a menor simpatia. A rejeição foi enorme - e natural - e aí começaram os pesadelos e o mau dormir. Quando falei com ela, senti o apavoramento que desabrochava dela, e ela nem queria imaginar que pudesse perder os seus pais! Exatamente a mesma coisa aconteceu com o maninho dela.

Mas o processo foi decorrendo, ela e o irmão foram várias vezes levados à força a encontros com a mãe, de onde voltavam perturbadíssimos e em pânico. As suas famílias somente podiam olhar, e sofriam com eles.

Há poucos dias recebi um telefonema da mãe da Luíza. Ela disse: “aconteceu o pior”. Me contou, chorando e muito emocionada, que dois dias antes tinham ido ao tribunal, eles e o outro casal com o menino. Luíza, que estava com gripe, tinha ficado de cama em casa. Alguém deu a mão ao irmão de Luíza, saindo com ele por uma porta. Ouviram-no chorar, mas quando os pais quiseram acudir, foi barrada a passagem deles. O juiz perguntou secamente e de um modo cortante, feito o vento frio das manhãs gélidas da fronteira do Rio Grande: “sabem que esta menina tem mãe?”. Ao tentarem, em pânico, gaguejar uma resposta, ouviram: “se não a apresentarem amanhã, serão acusados de sequestro”.

No dia seguinte, aquela Luíza que conheci radiante, apesar de assustada, a menina cuja memória mais remota era de uma vida com esta família, pais, avós, tios, primos, de uma hora pra outra viu a sua vida ser modificada radicalmente. Perdeu completamente a sua família. O seu norte. O seu rumo. Uma morte coletiva. Nossa família é nossa bússola, e o ponteiro que indica o norte é o coração.

E eu conhecia o juiz. É triste, mas Kafka também tem histórias para crianças. Só imagino como Luíza vai dormir agora, numa cama estranha, perto de pessoas estranhas, num ambiente estranho, frequentando uma escola estranha, com colegas e professores estranhos. Neste momento nem estou pensando no sofrimento dos adultos. Penso apenas no terror desta menina. Achava que não era possível, e foi. E eu conhecia o juiz.

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