11 de setembro de 2009

Woodstock

Esses acampamentos farroupilhas são o nosso Woodstock gauderiano. Barro aos montes. Música, peão e prenda, gaita de boca. Muita gente não viu sentido em Woodstock e não vê sentido também nos acampamentos. Agrupamentos não precisam ter sentido algum além do desejo de juntar pessoas com coisas em comum. Os acampamentos se formam dessa vintade de cultuar a tradição. Pode ser só um pretexto, mas é um bom pretexto para reunir um monte de homem em volta do fogo e repetir as mesmas histórias uma noite inteira, mentindo e contanto vantagem.

Já fui num acampamento farroupilha. Fiquei chuleando um piquete, onde riam de qualquer coisa, e vi um homem da cidade se aprochegar. Chegou, apresentou-se, disse que era crioulo do Saicã, e que agora usava calça de friso, mas que fora criado nos campos do Caverá. Sentou-se num mocho e se ofereceu pra contar a história da vaca brasina assombrada.

Não era um causo, era uma história com "H". Como havia um certo cansaço com a repetição das mesmas conversas, foi acolhido no piquete. Contou então que lá pelo final dos anos 60, havia uma vaca brasina assimbrada saída dos campos do Catimbau. Espichou e alargou bem a história, engarçou todo o começo, fez entradas de causos paralelos e sentiu que prestavam atenção nele.

A vaca brasina assombrada aparecia de surpresa, em noites de puro breu, e mugia ao lado dos galpões. Um vulto que chegava a ser gasoso. Movia-se na volta como se movem as assombrações. Todos viam a vaca brasina com olhos de bolita, mas ninguém se atrevia a chegar perto. E a vaca vinha e desaparecia como hoje desaparece o Belchior.

E foi assim durante anos da infância daquele homem no Caverá. Dormiam alertas, ele contou, pensando na vaca brasina, mesmo que seu Tibo, conhecedor da história da vaca brasina, assegurasse que o bicho não seria capaz de nenhuma maldade.

O homem narrou a história da vaca brasina, fez uma parada, deu um tempo para que se ouvisse o silêncio do fogo, e disse: era isso. Um peão de São Borja quis saber:

- Mas e a vaca brasina ainda está por lá?

O homem disse que sim, mas que não via a vaca fazia muito tempo, apesar de voltar sempre aos mesmos galpões.

- A vaca estava por ali, com certeza, mas eu não via mais nenhuma assombração.

- Mas como, home? - o peão insistiu.

- Porque virei adulto - falou com voz baixa, tentanto parecer Paulo Coelho e tirando proveito dos lampejos de vermelho que o fogo lhe jogava no rosto.

Foi quando alguém gritou:

- Então abre essa gaita, nego Ceceu!

A gaita roncou. O homem fez a sua parte, ficou por ali mais um pouco e foi embora com sua calça de friso. Woodstock e os acampamentos são um ajuntamento de adultos que decidem compartilhar memórias da infância que a maioria deles nem tem. É gente que ainda sente o cheiro de pelego molhado, de pasto seco, de mogango com leite, de paiol de milho... se muitos nunca viveram no campo, não interessa, porque não é preciso ter vivido no campo para ter visto uma assombração.

Acampamentos farroupilhas, na verdade, são um monte de crianças grandes urbanas se divertindo com a fantasia de que todos um dia tiveram um petiço tordilho. Esses piquetes barrentos se prestam para que se viva da lenda, no improviso, sem muito ensaio, mesmo que seja por somente uns parcos dias.

Foi assim com Woodstock, por uma única vez, e é assim no acampamento crioulo todos os anos. Com uma boa lenda, tá feito o guaraná.

(adaptado de Moisés Mendes)

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